Começou na terça-feira, 4 de setembro, a 14ª Semana de Ciência, Arte e Política (Scap). O evento, promovido pela Unidade São Gabriel, tem o objetivo de investir na formação da comunidade acadêmica por meio da discussão de temas contemporâneos e interdisciplinares. Esta edição aborda o tema Tempos desiguais... Diversas formas de viver.
O Pró-reitor Adjunto da Unidade, Prof. Tarcísio José de Almeida, deu as boas-vindas ao público presente. "Com muita alegria, nós estamos começando mais uma edição da Scap. Eu agradeço à equipe organizadora e a presença dos alunos, professores e da comunidade".
Presidente da comissão organizadora do evento, o Prof. Dr. Cláudio Listher Marques Bahia afirmou que a Scap avigora o que a PUC Minas apresenta como um dos seus princípios norteadores pedagógicos. "O domínio conceitual, de formação de múltiplas capacidades e de condutas intelectuais inovadoras e favoráveis à autonomia intelectual, pois é necessário garantir a formação humanística, política e ética da comunidade acadêmica. E destaca ainda a importância da interdisciplinaridade na relação da Universidade com a sociedade", afirmou, declarando aberta a edição de 2023 e fazendo votos de que seja uma oportunidade para pensar e vivenciar um mundo mais belo, justo verdadeiro e fraterno.
O Diretor Acadêmico da Unidade, Prof. Dr. Lauro Soares de Freitas, entregou o certificado de participação à Prof.ª Adriana de Barros Ferreira, representando o Grupo de Pesquisa Alquímicos, que levou exposição fotográfica A Ilusão Alquímica da Paisagem ao evento. Também houve a apresentação do grupo Sonoro Despertar: orquestra de flautas e coral, composto por crianças e adolescentes que participam do projeto de extensão Sonoro Despertar: intervenções socioeducativas, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria dos Anjos Lara e Lanna.
Após o momento institucional e cultural, o escritor e documentarista João Moreira Salles ministrou a conferência de abertura, que foi mediada pelas professoras Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero, da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA) e Maria Cristina Martins de Andrade, da Faculdade de Psicologia (Fapsi). Recentemente, Salles publicou Arrabalde, série de sete reportagens sobre seu período na Amazônia, e foi esse o tema do primeiro debate.
Elisa Rezende lembrou que no dia 5 de setembro é comemorado o Dia da Amazônia. A professora, que esteve à frente da comissão organizadora da Scap de 2012 a 2021, lembrou que o tema ambiental sempre se impôs, provocando reflexões sobre seus desafios. Ao lembrar do tema central desta edição, o tempo, ela citou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que afirmou que não temos mais tempo. (...) o prazo que temos para parar de destruir o planeta está esgotando. "Prestar atenção é algo importante na conversa de hoje. Por mais que a ciência nos diga que já estamos vivendo o contexto de catástrofe como aumento da temperatura do planeta e todas as suas consequências, parece que não estamos prestando atenção", refletiu.
Já a professora Maria Cristina Martins contou que teve a ideia de convidar Salles para ministrar a conferência de abertura quando estava imersa na leitura de seu livro. "Temos que mostrar o Norte para as pessoas, precisamos falar sobre a floresta, precisamos falar sobre os riscos. E, para fechar, eu tomo de empréstimo uma frase do autor ao meu lado: ver tem uma dimensão ética, não ver também. É uma escolha", pontuou.
João Moreira Salles reflete sobre a importância da Amazônia para a vida na Terra
João Moreira Salles abriu sua conferência lendo um trecho de um livro escrito por Frei Gaspar de Carvajal, que fez o que a história reconhece como a primeira travessia do rio Amazonas, de sua nascente até o mar: É terra temperada onde se colherá muito trigo e se darão todas as árvores frutíferas. Além disso, está aparelhada para criar todo o gado porque há nelas muitas ervas como em nossa Espanha, tais como orégano e cardos pintados e rajados, e outras muitas ervas boas. Os montes dessas terras são azinhais e soverais porque nós as vimos e elas estão lá. "Bom, orégano é uma planta do Mediterrâneo, ela não existe na Amazônia. E também não existem os tais cardos, e muito menos os azinhais e soverais. Isso significa que já em 1541 um europeu olhou para o que tinha diante de si e viu o que queria ver ou, mais precisamente, viu o que já conhecia e projetou o mundo dele", analisou.
Segundo Salles, foi Carvajal que batizou a regio, pois, durante essa viagem, a nau em que ele estava junto com outros espanhóis foi atacada por uma das nações indígenas que viviam à margem do rio. Ele descreveu o ataque dizendo que esses guerreiros eram liderados por mulheres altíssimas e de uma valentia extraordinária, e ele viu nelas amazonas. "Não fazemos a menor ideia do que o Carvajal viu, mas é muito pouco provável, se não impossível, que ele tenha visto uma nação indígena liderada por mulheres guerreiras. Ele viu o que ele já existia ou que pelo menos já existia na imaginação dele, já que as amazonas são figuras da mitologia europeia", explicou, ao elucidar que o nome da maior floresta tropical do mundo nasce, portanto, de uma incompreensão. "E isso vai marcar os próximos 500 anos da nossa relação com esse bioma. Esse sentimento de inferioridade em relação à floresta é algo que carregamos até hoje", pontuou.
Para Salles, a Amazônia sofreu um processo de ocupação e de colonização tanto violento quanto indiferente. "É uma indiferença da máquina burocrática que levou pessoas para lá quase que com o compromisso de não se interessarem pelo lugar, de o substituírem por outra coisa", disse, ao comentar que durante as décadas de 1960 e 1970, com a migração para o Norte promovida pelo regime militar, a Amazônia era vista pelo imaginário coletivo como um estorvo ou um manancial de recursos a serem explorados. "A ideia mestra de ocupação da floresta era uma ideia de substituição: substituição do estranho pelo familiar, troca da desordem da selva pela ordem da lavoura. Ou, pelo menos, esse era o projeto", ponderou. Para ele, essa estratégia se revela como uma falha de imaginação daqueles que não souberam ver, compreender e se interessar pela floresta. "A hipótese que eu desenvolvo no livro é que esse desinteresse sempre foi funcional, no sentido que é muito mais fácil destruir o que não está investido de interesse, de zelo, de cuidado e de amor. Você destrói e não sofre porque o que está sendo destruído não está investido de nenhum tipo de afeto".
Salles pontuou que a falta de interesse pela Amazônia é uma tragédia imensa, já que ela está no centro da crise climática. "Se a Amazônia se for, a vida no planeta se torna outra, certamente mais hostil", alertou. Além do impacto ambiental, há a dimensão cultural que, segundo Salles, nunca foi assumida pelo Brasil. "Nós fracassamos na transformação da floresta em matéria simbólica. Ao longo desses 500 anos de produção cultural no Brasil, a floresta nunca foi incorporada à nossa imaginação", disse, reforçando que a cultura incentivada pelo modelo de ocupação da região sempre foi a agrícola, denominada por ele como cultura do boi. "Eu ouvi de vários fazendeiros que foram para lá a frase: quando eu cheguei aqui não tinha nada. E esse nada é floresta tropical mais rica do mundo", contou.
Salles acredita que é preciso disseminar a história e a importância da região amazônica para que ela seja vista com a admiração e reverência que merece. É preciso que as pessoas saibam, por exemplo, que os estudiosos estimam que a região era ocupada por cerca de 10 milhões de habitantes quando o território foi descoberto pelos europeus, em 1500. Em cerca de três séculos, essa população foi reduzida em 90%. Muitos morreram por atos de violência, mas a maioria foi vítima das doenças trazidas pelos europeus, o que ele definiu como um genocídio sanitário. "Os europeus chegaram em nome de Deus e da Coroa para expropriar. No final do século XVIII, os naturalistas chegaram, ostensivamente em nome da ciência, interessados em ver e conhecer. O que eles viram foi uma floresta vazia e tomaram aquilo como uma situação natural, não se deram conta que aquilo era um artefato da colonização, aquilo era o produto de uma chegada desinteressada e violenta de conterrâneos seus, três séculos antes, que dizimou a população que lá existia", explicou.
Esse primeiro olhar da ciência para a floresta como um ambiente vazio, hostil e incapaz de prover devido a dificuldade de conseguir recursos persistiu até meados das décadas de 1970 e 1980. "Um slogan do regime militar dizia que A Amazônia era terra sem gente para gente sem terra. Então, você pega gente sem terra do Sul, do Sudeste, do Nordeste e leva para a Amazônia, que é terra demais para pouca gente", explicou, sobre a estratégia de povoamento da região.
"Estamos falando de dez milhões de pessoas, que se distribuíam pela floresta inteira em um modelo urbanístico muito diferente daquele que a gente conhece. Os arqueólogos e antropólogos dizem que o modo de viver dessas populações, por mais variado que fosse, havia entre todas elas um denominador comum que, evidentemente, era a floresta", afirmou. Distribuídos em um modelo denominado galáxias urbanísticas, esses povoamentos produziam um sistema conhecido como cidades-jardim. Esses povos domesticaram 83 plantas, como abacaxi, amendoim e açaí, entre muitas outras. "Isso é mais do que a civilização chinesa conseguiu domesticar. E esse fato se torna ainda mais extraordinário quando se observa que os solos da Amazônia, em geral, são pobres. "A Amazônia é uma região muito antiga que vem sendo varrida por chuvas torrenciais há milênios, o que torna a terra muito ácida e pouco propícia ao plantio. O que fizeram os indígenas? Construíram a fertilidade do solo. Ao longo de centenas de anos eles foram fertilizando o solo com matéria orgânica".
Estima-se que essas terras, que são chamadas de terras pretas de índio, possam ocupar até 10% da Amazônia. Outros estudos indicam que ocupem cerca de 3% da região. "Ainda assim é muita coisa. Isso é um território maior que a Inglaterra de solos construídos. Essas terras pretas estão entre os solos mais férteis do mundo, e o extraordinário é que elas continuam férteis. Então, também são estáveis. É uma fertilidade construída pelos povos que estavam lá desde sempre e continuam lá", pontuou.
Segundo ele, esses exemplos demonstram a necessidade de modificar o olhar sobre a floresta. "Quando você olha para a Amazônia, o que você vê? Um bem natural ou um artefato de cultura? Natureza ou arte? E eu acho que a resposta que a ciência tem dado é que você está vendo as duas coisas. Essa é uma floresta-jardim porque é uma floresta, em parte, plantada. Ou, como eu acho mais bonito, é uma floresta cultural", opinou, ao afirmar que a floresta é o legado de uma civilização que estava aqui, portanto, é uma responsabilidade de todos os brasileiros.
A importância da Amazônia não é só uma questão de ancestralidade, história e cultura, mas, também de presente e futuro. Salles pontuou que a floresta cumpre uma importância para a atualidade que nenhuma construção histórica vai cumprir, já que ela é determinante para a sobrevivência da vida conforme conhecemos. Ele lembra que a Amazônia está na confluência de três das nove fronteiras biogeoquímicas que não podemos cruzar para não perder o equilíbrio da Terra, ou seja 30%: carbono (porque o Brasil é país com a maior tonelagem de carbono estocado em matéria orgânica por causa da floresta e, se ela queimar, esse carbono vai para a atmosfera), biodiversidade (abriga entre 12% e 15% da biodiversidade do planeta) e ciclos hídricos (produz 20% da água doce do planeta). "Portanto, a Amazônia é essencial para que a vida continue. O Brasil é um país que foi poucas vezes chamado a cumprir uma missão global. Agora tem essa possibilidade de cumprir um papel absolutamente central para a sobrevivência do planeta. E eu acho que a nossa tarefa como brasileiros é essa nesse momento", finalizou. Assista a conferência completa no canal PUC Minas Lives, no YouTube.
A 14ª Scap vai até o dia 6 de setembro. Acesse a programação no site.
Assessoria de Imprensa
PUC Minas