Estudo foi apresentado no dia de aniversário de 32 anos de promulgação do ECA
Como um passarinho que precisa voar e ganhar o mundo, assim é cada um dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, lei 8069/1990) que estavam sendo distribuídos, de dentro de uma gaiola, por Gilson Júnior Vieira Amorim Lima e Laisa Vitória Ribeiro de Paula, crianças assistidas pelo Projeto Providência, na entrada do evento de lançamento da pesquisa O Impacto da Covid-19 na Infância e Adolescência: um estudo com famílias em comunidades de Belo Horizonte, de autoria da professora Fernanda Flaviana de Souza Martins, do Departamento de Serviço Social da PUC Minas e diretora geral do Providens Ação Arquidiocesana, da Arquidiocese de Belo Horizonte. O evento, na Unidade Fazendinha do Projeto Providência, no bairro Novo São Lucas, em Belo Horizonte, ocorreu na manhã desta quarta-feira, 13 de julho, data em que o ECA completou 32 anos da promulgação, e os membros do Projeto cantaram parabéns, com entusiasmo, com direito a bolo caracterizado. Gilson e Laisa fazem aulas de teatro no Projeto Providência e apresentaram um esquete em que reforçaram a importância do ECA e da Constituição da República de 1988 para assegurar o futuro das crianças e adolescentes. Professores da PUC Minas estiveram presentes à apresentação da pesquisa, assim como integrantes do Projeto Providência e beneficiados.
Apoiada pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP) da PUC Minas, a pesquisa aponta o crescimento da violência no contexto pandêmico e também os desafios enfrentados na educação dos filhos. De acordo com o estudo, realizado com as famílias atendidas pela Proteção Social do Projeto Providência, não é possível falar em violência e sim em "violências": "um ponto em comum entre as crianças, adolescentes e suas famílias foi o fato de todas elas sofrerem uma diversidade de 'violências'", ou seja, a intensificação das violações de direitos, tornando-as mais vulneráveis, além de sofrer a insegurança alimentar.
A pesquisa contou com a participação, como bolsista, da aluna de Serviço Social Patrícia Amélia Ferreira Morais, e as bolsistas voluntárias Sarah dos Santos Barbosa, do Curso de Serviço Social, e Sophia de Souza Martins, do Curso de Psicologia.
O Projeto Providência atende 1.870 crianças e adolescentes com faixa etária entre 2 e 17 anos e suas famílias, nas comunidades Vila Maria, Taquaril e Fazendinha (Aglomerado da Serra).
Nos próximos dias será lançado e-book com a pesquisa desenvolvida.
Dispensa vazia
Eliana Silva, de 40 anos, mora no Taquaril e tem dois filhos crianças, Maísa, de 3, e João Vítor, de 10. Ela classifica como "de muita violência" ter visto, durante a pandemia, sua dispensa vazia, sem poder fazer nada, inclusive trabalhar. Ela, que é auxiliar de serviços gerais, está sem trabalhar até hoje, não consegue emprego. Diz que, com a falta de trabalho durante a pandemia, a família sofreu violência, e as crianças violência psicológica, pois tinham que permanecer dentro de casa, não podiam sair. "Não sofri violência dentro de casa, mesmo com todos os problemas tentava resolver da melhor maneira possível", ressalta. Mas "mesmo durante a pandemia, o Projeto Providência nos ajudou, dando material para as crianças estudarem em casa e oferecendo cesta básica", diz, além de os filhos atualmente terem, no Projeto Providência, ensino de percussão e Maísa aprendendo a tocar flauta. "Essas atividades os incentivam a fazer o que gostam, não imaginava que eles gostavam disso". Ela sonha em conseguir um emprego, e ajudar o esposo na manutenção da casa. Ele é aposentado e ganha R$1,2 mil mensais e também faz "bicos". Eles gastam R$140 com o gás de cozinha, R$300 com água, e atualmente não recebem qualquer benefício do governo, diz.
Eliana disse que o Plantão Social do Projeto Providência auxiliou toda a comunidade durante a pandemia, com cesta básica, atendimento psicológico.
A professora Fernanda observou que o Projeto Providência "é um lugar de prevenção, onde as crianças podem realizar suas potencialidades". Ela chamou a atenção para a importância de se fazer valer o artigo 4º do ECA, que diz: "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".
Objetivo geral da pesquisa
A pesquisa teve como objetivo geral investigar os impactos da Covid-19 nas famílias da comunidade, e como objetivos específicos realizar a pesquisa documental com crianças e adolescentes, analisando a violência social. A pesquisa quantitativa foi desenvolvida de julho a outubro de 2021, abarcando 301 famílias da Vila Maria, 107 da Fazendinha e 112 do Taquaril. Já a pesquisa qualitativa envolveu seis profissionais do Projeto Providência, que descreveram a situação de pandemia. Foram entrevistadas oito famílias das comunidades. De acordo com a professora Fernanda, há diferença entre as pesquisas, sendo importante dar voz às famílias e publicidade a elas. Na Vila Maria foi constatado maior número de negligência e no Taquaril maior número de violência física, ressaltou a professora.
Ela explica que, infelizmente, a violência intrafamiliar acontece dentro do ambiente doméstico. Com a pandemia, a família ficou mais dentro de casa, deixando de ter essa rede de proteção formada pela escola, posto de saúde, Projeto Providência, Cras, Cress, que têm uma vigilância social natural do sistema de garantia. Quando a criança passa a não dispor dessa rede de garantia, que foi o que aconteceu durante a pandemia, ela fica mais dentro de sua residência, e muitas vezes o agressor pode estar lá dentro, observa a pesquisadora. "Dessa forma, ela fica mais suscetível às ocorrências de violência. Das famílias entrevistadas, muitas relataram essa ocorrência, as crianças muitas vezes também, pela condição socioeconômica, tiveram a insegurança alimentar e a falta da escola e aí vêm as angústias, as desordens de origem alimentar, as depressões, as ansiedades, problemas de ordem psicológica que também emergiram nesse contexto de pandemia".
Insegurança alimentar
A pesquisa demonstrou que um ponto em comum às famílias é a insegurança alimentar. Belo Horizonte tem mais de 250 famílias abaixo da linha da pobreza, não têm absolutamente nada, lembrou a professora Fernanda. "A incerteza de ter alimentos ou não, como seria o dia seguinte trouxe sofrimento a muitas delas. Por outro lado, são pessoas fortes, corajosas, que carregam fé e esperança em suas vidas", observou a professora.
Durante a pandemia de Covid-19, essas crianças e adolescentes ficaram numa situação de vulnerabilidade ainda maior, detectou o estudo. "Infelizmente elas não tinham acesso à educação, por não ter meios eletrônicos, como celular, computador. Então, temos aí não uma defasagem de escola e sim um abandono escolar pela falta de condições de poder estudar", diz a professora Fernanda. "Muitas de nossas crianças não conseguiram concluir o ano letivo, por não conseguirem estar presentes e acompanhar as aulas. Infelizmente, a pesquisa mostrou que a pandemia impactou, de uma forma muito direta, crianças e adolescentes moradores de comunidades, sobretudo resultando na evasão escolar."
A diretora geral considera que o Plantão Social do Projeto Providência foi fundamental para essas famílias, com escuta, orientação à família, concessão de cestas básicas, ações educativas, visitas domiciliares, entre outras ações. O espaço serviu para expor emoções no período da pandemia. "O Plantão Social ultrapassou famílias atendidas e alcançou as comunidades", observou a professora. "As crianças sentiram muita falta do Projeto Providência (durante a pandemia)". "Se a gente está passando insegurança alimentar, as crianças chegam pelo alimento. Foram retiradas delas, durante a pandemia, quatro refeições diárias, mais a escola", calcula. As crianças chegaram pedindo socorro, disse. A Covid-19 impactou famílias com a incerteza do alimento, disse ela, alertando para o fato de que a fome é uma violência também, além da ausência de políticas públicas eficazes.
A importância do método criado pelo padre Mário Pozzoli, fundador do Projeto Providência, foi citado por todos os técnicos do projeto participantes da pesquisa, pontuou a professora. Dirigindo-se a eles, a diretora disse que "todos os equipamentos dessa cidade fecharam durante a pandemia e vocês estavam lá, isso foi um alívio para essas famílias", elogiou a professora Fernanda.
Fernanda chamou a atenção para se perceber que uma criança está sendo vítima de violência, o que necessita de uma escuta cuidadosa, verificando se há marcas, cicatrizes na criança, se ela está permanecendo muito quieta perto da família. "A criança precisa ser colocada no centro e pode estar precisando de apoio", devendo os casos serem comunicados ao Conselho Tutelar. Também alertou que a violência física, nem mesmo uma palmada, não é mais permitida com o ECA e que ainda há uma certa naturalização dessas atitudes dizendo-se que se estava educando. "Que nós abracemos a cultura de paz, deixando a cultura da palmada para trás".
Vila Maria
De acordo com a parte da pesquisa desenvolvida na Vila Maria, apresentada no evento pela bolsista Patrícia Morais, crianças e adolescentes de 2 a 19 anos são atendidos pelo Projeto Providência, sendo que 97% das famílias entrevistadas são brasileiras e 3% haitianas. Trinta e oito por cento das crianças estudavam pela manhã; 60% das famílias se autodeclaravam negras ou pardas e 12% brancas. Das cem fichas aplicadas, 97% disseram ser atendidas pelo Plantão Social do Projeto Providência. Vinte e sete por cento das famílias são sustentadas por mulheres e 2% só têm o pai. Quarenta por cento das famílias desempregadas não tinham mãe trabalhando formalmente (renda formal). "As famílias estavam passando fome no período de pandemia", constatou Patrícia. Nesse período, apenas 40% tinham algum acesso à internet (incluído o celular). Sessenta e dois por cento diziam não ter computador ou não tinham internet. "Como um mesmo celular vai comportar três crianças estudando ao mesmo tempo?", questionou Patrícia.
Foram constadas violência e negligência em 27% dos casos, com vários tipos de abandono, falta de cuidado com a criança e o adolescente. A violência física esteve presente em 15% dos casos, o bullying em 3% e também violência sexual. Com relação à vulnerabilidade, 70% das famílias são de baixa renda ou famílias que contam com o auxílio de um ou outro vizinho, ressaltou Patrícia. "Quando nós dizemos sem renda, é sem renda mesmo, não tem ajuda do governo, consegue ajuda com familiares", pontuou. Com relação a questões ligadas à saúde mental, a pesquisa registrou 8% de casos de abandono e 6% de automutilação, por exemplo. Relacionados ao atendimento do Plantão Social do Projeto Providência, 98% das famílias entrevistadas receberam orientação e atendimento, 80% cestas básicas, oficinas de empregabilidade com adolescentes encaminhados a oportunidades de trabalho e distribuição de marmitas às quartas-feiras.
A aluna Patrícia, que está se formando neste mês de julho, disse que a pesquisa foi um momento importante de aproximação com a realidade, de aproximação com as famílias e do campo de investigação. "O estágio também aproxima, mas na pesquisa é diferente, te leva para a realidade".
Taquaril
A bolsista voluntária Sophia, atualmente no 5º período, ficou responsável pela pesquisa quantitativa do Taquaril. Ali, 70% das famílias que participaram do estudo eram de Belo Horizonte e 30% de Sabará. A maioria das responsáveis pela família era mulher e a maioria das famílias monoparental feminina. A maioria das famílias tinha de 4 a 6 membros num mesmo teto, contou Sophia. Cinquenta e oito por cento dos entrevistados se encontravam desempregados, a maioria ambos pai e mãe desempregados. Vinte e quatro por cento não possuíam qualquer renda, sendo a grande maioria beneficiário de Bolsa Família. Várias famílias conviveram com depressão, diabetes, esquizofrenia, entre outras doenças. Foi constatado grande número de violência contra mulheres, mesmo que grande número de famílias sejam monoparentais.
Foi a primeira vez que Sophia participou de uma pesquisa que, de acordo com ela, foi muito enriquecedora. Quando chegou a vez de fazer estágio, ela disse que já sabia muita coisa que aprendeu, como a estruturação de uma pesquisa, nas entrevistas, na interação com as equipes e com as famílias.
Fazendinha
Desenvolvida pela bolsista voluntária Sarah, a parte da pesquisa referente à Fazendinha (Aglomerado da Serra) indicou 100% dos participantes residentes em Belo Horizonte. Cinquenta e sete por cento dos casos frequentam a escola na parte da tarde. Noventa e oito por cento das crianças no ensino fundamental. Cinquenta e três casos de mães solteiras e 92 casos em que a mãe era a responsável pelo sustento do lar. A maioria das famílias participantes do estudo tinha acesso à internet, mas 84% não tinha computador em casa. Setenta e sete por cento tinham imóvel próprio e quitado. Vinte e quatro por cento dos entrevistados sofreram violência física e 4% violência psicológica e também violência sexual. Foram constatados moradia e vínculos precários.
Medir para transformar
Presente ao evento, o professor Paulo Fernando, coordenador do Núcleo de Inteligência Social (NIS), fruto de parceria entre a PUC Minas e a Child Fund, disse que o estudo é importante para que a comunidade e a realidade sejam conhecidas, realidade que é vivida e não é percebida por muitos. "Esse tipo de estudo é fundamental, as realidades são diferentes. A extensão da PUC Minas é ligada à pesquisa e é uma forma de conscientização". O professor pontuou que Belo Horizonte tem mais de 200 mil pessoas em situação de vulnerabilidade, dado que mostra que este estudo merece ser divulgado o máximo possível. Ele anunciou que no segundo semestre deste ano o NIS começará a desenvolver parceria com a Providens. De acordo com o professor Paulo, o NIS tem o papel de medir para transformar, ajudar a transformar e a conhecer para entender a realidade da população.
Também presente, o professor Waldeir Eustáquio dos Santos parabenizou a PUC Minas pelo serviço social desenvolvido e disse ficar grato em ver estudantes e professores atuando na Providens. "Que vocês continuem, eu tenho certeza que vocês fazem diferença na vida das pessoas, que sabem o tanto que vocês contribuem".
Assessoria de Imprensa PUC Minas