Por Carina Araújo S. Neves
(Professora e Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Digital, Gestão da Inovação e Propriedade Intelectual. Advogada. Presidente da Comissão Estadual de Educação Digital da OAB/MG).
Vivemos uma era de transformações profundas e aceleradas. O avanço das tecnologias digitais está remodelando – silenciosamente e [quase] sem resistência – a forma como vivemos, nos comunicamos e tomamos decisões. A digitalização da sociedade – intensificada pelo uso massivo de inteligência artificial (IA), redes sociais, aplicativos, plataformas de conteúdos digitais – transformou o mundo em um ambiente permanentemente conectado, em que tudo é informação e dados. E toda informação é poder.
Esse cenário de transformação – quiçá de revolução – tem trazido imensos desafios ao Direito, impondo-lhe um novo ritmo de adaptação e uma postura proativa diante de fenômenos que, muitas vezes, ultrapassam os limites do que está formalmente positivado.
Regular o digital não é apenas necessário: é urgente! A regulação deixou de ser uma questão técnica para se tornar um debate de ordem pública. O “quanto”, o “quando” e o “como” regular esse novo mundo sem comprometer a inovação e, ao mesmo tempo, proteger Direitos Fundamentais exigirão reflexão profunda e participação de múltiplos atores.
ENTRE A INOVAÇÃO E A RESPONSABILIDADE
A regulação na era digital deve encontrar o difícil equilíbrio entre, numa ponta, fomentar a inovação tecnológica e a competitividade econômica e, na outra ponta, assegurar Direitos Fundamentais, como a liberdade de expressão, a privacidade e a não discriminação. Isso se torna ainda mais desafiador quando lidamos com tecnologias que aprendem sozinhas e que podem reproduzir vieses, manipular a percepção pública e operar de forma opaca aos olhos dos usuários e, até, dos desenvolvedores.
No campo jurídico, a inteligência artificial já transforma a maneira como advogados, juízes e órgãos públicos operam. Ferramentas de predição jurídica, chatbots, jurimetria e automação de decisões desafiam não apenas os limites da atuação humana – mas, também, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade.
Como garantir o contraditório e a transparência diante de decisões automatizadas? Quem é o responsável por erros cometidos por sistemas que aprendem e operam sozinhos?
As perguntas podem até ser simples; as respostas, nem tanto.
A tecnologia pode – e deve – ajudar a promover o acesso à justiça. É necessário, portanto, uma regulamentação clara, a fim de evitarmos o risco de neutralizar desigualdades, aprofundar diferenças e transferir decisões humanas a sistemas que operam como verdadeiras “caixas-pretas”.
Num outro espectro de entendimento estão os defensores da liberdade de expressão, não discriminação de atividades econômicas e direitos fundamentais, que por definição, são aplicáveis aos desenvolvedores de ferramentas que usam por base a inteligência artificial.
A defesa desse ponto de vista encontra amparo nas inúmeras inovações tecnológicas da humanidade, tais como máquinas de automação, automóveis e, inclusive, a própria internet que possibilitou meios alternativos de divulgação de informações.
Impor restrições e regulamentações, além de arriscar limitar o progresso, encontra seu maior desafio em “quem”, “como” e “quais” os parâmetros para que regras sejam aplicadas.
A PROTEÇÃO DE DADOS COMO PILAR CIVILIZATÓRIO
A promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil, foi um marco civilizatório. Inspirada no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR), a LGPD estabelece princípios e obrigações claras para o tratamento de dados pessoais, bem como direitos dos titulares, tanto no setor publico quanto no privado.
No entanto, a sua efetiva implementação ainda caminha lentamente, uma vez que depende de fiscalização ativa e de uma mudança cultural em relação à privacidade. É preciso fortalecer a atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e fomentar a cultura da proteção de dados em todos os níveis da sociedade, incluindo o setor público.
Os Dados não são apenas “coisas” a serem protegidas. Os Dados são expressões da nossa identidade e, por isso, quem os detém, detém, consequentemente, poder. Esse poder precisa ser limitado e fiscalizado, com o objetivo de evitar a coleta indiscriminada de informações para, por exemplo, treinar algoritmos ou direcionar publicidade, o que pode colocar em risco liberdades individuais, além de abrir caminhos para manipulação social.
A LGPD dialoga, também, com a propriedade intelectual, na medida em que dados podem ser utilizados para desenvolver soluções inovadoras, treinar algoritmos e estruturar modelos de negocio. Surge, então, a necessidade de compatibilizar os direitos de propriedade intelectual com a proteção da privacidade, evitando usos abusivos e monopólios informacionais.
AS PLATAFORMAS DIGITAIS COMO NOVOS ATORES REGULADORES: entre a liberdade e a responsabilidade
As plataformas digitais tornaram-se arenas centrais da vida pública. Nelas, formamos opiniões, interagimos e nos informamos. Podemos dizer que, nelas, também, somos alvos de desinformação, discurso de ódio, manipulações e deepfakes.
Essas plataformas, movidas por algoritmos e modelos de negócios baseados na atenção, têm um poder incomparável de moldar comportamentos e afetar processos democráticos.
A regulação da desinformação, a responsabilização por conteúdos ilegais, o combate a deepfakes e a transparência algorítmica ganham cada vez mais relevância em debates públicos e privados. Em contrapartida tem ficado cada vez mais patente e reveladora a dificuldade de construir consensos diante de interesses econômicos e políticos tão diversos, como temos experienciado nas discussões do Projeto de Lei das Fake News.
A discussão sobre a regulação das redes sociais e dos algoritmos que as operam não pode ser confundida com censura. A discussão deve ter por objetivo garantir que essas plataformas atuem com responsabilidade e transparência, possibilitando compreender o funcionamento de seus mecanismos de recomendação, como lidam com conteúdos ilícitos e quais medidas adotam para evitar abusos.
Enquanto o foco das discussões girar em torno da liberdade de expressão e a censura, a atuação de sites e plataformas de apostas e jogos online, que operam muitas vezes às margens da legislação, continuará impactando fortemente sobre a juventude, sobre a parcela da população mais desfavorecida economicamente e sobre os padrões de consumo em geral.
Há uma verdade sobre as plataformas digitais e sobre ela precisamos refletir urgentemente: a velocidade e o alcance dessas tecnologias fazem com que os danos sejam, na maioria das vezes, irreversíveis.
Para onde vamos?
Como coordenadora de um curso voltado à formação de profissionais do Direito Digital, Gestão da Inovação e Propriedade Intelectual do Instituto de Educação Continuada da PUC Minas, vejo com entusiasmo o crescente interesse pela área, com a consciência de que estamos apenas no início de um longo e exigente caminho, tanto de conhecimento técnico como de coragem ética para enfrentar os dilemas que se impõem a cada etapa da evolução da inovação.
A regulação deve ser pensada como um projeto de futuro, embora exija escolhas no presente, a fim de construir marcos jurídicos que sejam tecnológicos, éticos e humanistas, capazes de promover inclusão, diversidade, autonomia informacional e justiça social. Entretanto, é indispensável que exista um franco debate com aqueles defensores da não regulamentação, compreender as razões que os motivam e, por fim, buscar a solução que melhor atenda ao bem comum.