A necessidade de isolamento social para conter a disseminação do coronavírus interrompeu diversas atividades cotidianas e afetou, inclusive, a saúde das pessoas. Com a orientação de sair de casa apenas em caso de necessidade, as consultas eletivas – aquelas agendadas, que não são consideradas de emergência – ficaram para depois. Isso impactou diretamente os cuidados odontológicos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os serviços de saúde bucal foram um dos mais afetados na pandemia, com 77% dos países relatando interrupção parcial ou total. A falta de acompanhamento somada a outras interferências causadas pela alteração na rotina, como mudança de hábitos alimentares e transtornos mentais, claro, trouxe consequências. Cáries e bruxismo são algumas das sequelas da pandemia.
No entanto, falar de saúde bucal é falar de qualidade de vida. É o que afirma a professora do Curso de Odontologia da PUC Minas e doutora em Saúde Pública, Gisele Macedo da Silva Bonfante. "Basta lembrar-se das atividades diárias e cotidianas que têm a ver com nossa boca: alimentar, falar, sorrir... Saúde geral e saúde bucal são indissociáveis", observa a professora, ao alertar que, apesar da necessidade de medidas de controle da Covid-19, outros eventos em saúde não deixaram de acontecer, e a interrupção do acompanhamento pode agravar a situação de saúde, sobretudo, de condições crônicas. "Ainda incorremos no risco da automedicação que pode agravar ainda mais a situação", pontua.
A professora reforça que a Odontologia já se organizou em termos de biossegurança para atendimento seguro dos pacientes. "Então, se você teve tratamentos interrompidos e ou apresenta alguma condição nova em saúde bucal que surgiu durante a pandemia você deve procurar um profissional para ser avaliado ou reavaliado", aconselha. Segundo ela, os profissionais estão autorizados a fazerem o telemonitoramento de seus pacientes e teleorientação, procurando determinar qual o melhor momento para que este paciente retorne ao atendimento presencial. Essa avaliação deve ser feita por um profissional, mas, é fundamental que os pacientes estejam atentos aos sinais do organismo.
A professora alerta que dor, inchaço, sangramento, manchas, novas lesões que não cicatrizam e alterações que gerarem risco de agravamento da condição de saúde geral e/ou bucal são condições de urgência e consideradas inadiáveis e, por isso, devem ter atendimento presencial. "Pacientes portadores de diabetes mellitus comumente têm maior risco de doença periodontal, mas também a condição periodontal tende a influenciar o controle glicêmico. Sendo uma condição de saúde mais vulnerável à Covid-19, temos uma convergência de risco que depende da manutenção e coordenação do cuidado desta pessoa", exemplifica.
De acordo com o Conselho Federal de Odontologia (CFO), o maior impacto das mudanças na rotina de cuidados com a saúde bucal em decorrência da pandemia foi a maior incidência de cáries e doenças gengivais. Alimentação desequilibrada e má escovação explicam esse cenário. "Uma dieta rica em açúcares está associada a maior risco de cárie e doenças periodontais, e consequentemente perda dentária. E não estamos falando de açúcar visível. Produtos industrializados têm açúcar oculto", alerta Gisele. Além de evitar o excesso de açúcar, a boa escovação faz toda diferença. O uso da pasta de dente, com flúor, em pelo menos uma escovação diária, diminui este risco. A professora alerta, entretanto, que a quantidade de dentifrício para adultos e crianças é diferente e para nenhuma faixa etária ocupa toda a escova. "Uma dica legal é colocar o tubo com a boca para cima e apertar levemente passando a escova. Para crianças cerca de um grão cru de arroz e adultos uma ervilha", ensina.
A professora ressalta, porém, que em muitos casos, a falta de acesso até mesmo a um item básico de higiene impede que os cuidados sejam tomados da forma ideal. "Estamos falando sobre um contexto que às vezes é o que se tem para comer. Não é escolha, é oportunidade. Logo, entendo que do outro lado, nas políticas, no sistema de saúde precisamos construir estratégias que deem conta disto também", pondera.
Outro impacto direto da pandemia na saúde foi o aumento da ansiedade que, por sua vez, também trouxe consequências para a saúde bucal: o bruxismo, distúrbio que atinge 30% da população mundial e 40% da população brasileira, segundo estudo da OMS. De acordo com Gisele, existem dois tipos de bruxismo: o de apertamento, em que sofrem mais as estruturas de suporte do dente, e o de ranger, com desgaste da estrutura dentária. Alguns sintomas comuns são dor e/ou estalos na abertura e fechamento da boca, restrição de abertura ou dificuldade de fechar a boca, travamento fechado ou aberto da boca, dor muscular no rosto, podendo estar associado à dor de ouvido ou zumbido nos ouvidos, retração gengival, fratura dentária ou de restaurações. "É comum que o companheiro observe e relate o ranger ou o apertamento dentário durante a noite. Algumas pessoas se prestarem atenção conseguem elas mesmas sentirem que estão apertando os dentes ou rangendo durante o dia", aponta.
O tratamento envolve terapias de suporte para controle dos sintomas e das causas, sendo interdisciplinar e, na maioria das vezes, multiprofissional. "A utilização de placas ou dispositivos oclusais costumam ajudar, mas dependem da utilização do paciente. Para alguns casos tratamentos irreversíveis são indicados, como aparelhos ortodônticos e ajustes oclusais ou restaurações definitivas. Quando não somente a oclusão é causa do bruxismo, estando associada a quadros de ansiedade e estresse, terapias para controle de tensão emocional precisam fazer parte do projeto terapêutico. Alguns casos exigem intervenção cirúrgica. De qualquer modo todo tratamento inicial deve ser sempre mais conservador, reversível e não invasivo, ainda mais na pandemia", explica a professora.
Para evitar intercorrências, sejam elas motivadas por fatores emocionais ou físicos, a indicação é para que, mesmo com o cotidiano alterado pela pandemia, se mantenha uma rotina de autocuidado. No caso da saúde bucal, as orientações já são velhas conhecidas: controlar a frequência de ingestão de açúcar, higienizar a boca pelo menos uma vez no dia, usando pasta de dente fluoretada, escova de cerdas macias e fio dental.
"Do outro lado, nós dentistas, inclusive como cidadãos, batalharemos com conhecimento de causa, por um sistema de saúde que se aproxime dos desafios de saúde bucal que nosso país e cada um de nós enfrentamos. Devemos facilitar as escolhas mais saudáveis, transformando e trazendo mais oportunidades de acesso ao direito à saúde bucal", afirma Gisele, que acredita que é difícil falar somente de saúde bucal em um contexto socioeconômico que evidencia o acirramento de desigualdades. Soma-se a esse cenário o fato de que as pessoas estão mais isoladas, estressadas, introspectivas e desmotivadas. Efeitos de uma pandemia que se estende. "Precisamos falar de preservação da vida. Então, o que eu diria não tem a ver somente com a saúde bucal. Cuidem-se no que for possível para que possamos continuar a sorrir. Reserve alguns minutos no dia para cuidar de você", aconselha.